Cachaça tem terroir? Bem, vamos por partes…

Posted by | August 17, 2015 | Artigos | No Comments
Cúpulos reunidos em Analândia: terroir era o tema na mesa. Foto: Maurício Motta

Cúpulos reunidos em Analândia: terroir era o tema na mesa. Foto: Maurício Motta

Um dos temas que mais tem perseguido os membros da Cúpula da Cachaça nos últimos tempos nos vem sempre em forma de pergunta: “É correto falarmos em ‘terroir’ para a cachaça?” A pergunta compreende uma série de questões que vão desde as meramente linguísticas até as mais profundas, de ordem técnica e do campo do conceitual. Ou seja, a resposta não é fácil. Mas a Cúpula serve para vencer desafios.

Em face disso, fomos para a 3ª Cúpula da Cachaça resolvidos a dar uma resposta – a nossa resposta. Os 12 integrantes do grupo estavam preparados para uma guerra, cujo campo de batalha seria a grande mesa da Cachaçaria Macaúva, em Analândia (SP), e as principais armas, muitas garrafas e argumentos. Felizmente, as garrafas foram esvaziadas e nenhuma foi quebrada e utilizada como arma, no sentido mais literal.

Era nítida a polarização dos cúpulos, parte apegada a uma visão mais técnica e cientificista da definição do termo e outra com uma visão mais multidisciplinar e mais apegada a critérios culturais e humanísticos.

E o que é o tal do terroir?

Logo no início dos debates ficou clara a necessidade de antes de qualquer coisa definir o que significa o termo “terroir” – e eu particularmente prefiro “território”, já que, uma vez que estamos defendendo uma identidade nacional para o produto, nada mais correto do que utilizar um termo em nosso idioma. Mas, como estávamos em uma discussão democrática e para não pender para nenhum dos lados, vou utilizar “identidade regional”, que, por si, já define muita coisa.

Detectamos que em nenhum idioma existe um consenso na definição do termo, o que tornou nosso caminho mais árduo e pedregoso. Mas, como adoramos o bom debate, seguimos em frente. Para ultrapassar essa barreira seria necessário chegar a uma definição que agradasse tanto aos membros mais cientificistas quanto aos mais culturalistas.

Seguimos tentando enxergar o assunto do ponto de vista do consumidor. Para ele, a “identidade regional” representa a expressão da soma de três fatores: planta, solo e clima. É uma noção um tanto simplista, já que não envolve diversos outros fatores talvez mais importantes do que somente essas influências. De toda forma, a corrente cientificista frisou que é impossível comprovar em laboratório a origem de uma cachaça e, portanto, “não há terroir”. O argumento era difícil de refutar, por ser baseado em dados e defendido por três cúpulos que são químicos brilhantes e especialistas no assunto, com teses de mestrado, doutorado e pós-doutorado baseadas no destilado nacional.

O terroir da ONU

Os mais culturalistas buscamos nas práticas atuais o que mais exemplificaria nossa visão e chegamos à definição internacional de terroir adotada pela Unesco: “A Terroir is a geographical limited area where a human community generates and accumulates along its history a set of cultural distinctive features, knowledges and practices based on a system of interactions between biophysical and human factors. The combination of techniques involved in production reveals originality, confers typicity and leads to a reputation for goods originating from this geographical area, and therefore for its inhabitants. The terroirs are living and innovating spaces that cannot be reduced only to tradition”. Em tradução livre: “Um Território é uma área geográfica limitada onde uma comunidade cria e transmite, através das gerações, um grupo de características culturais distintas, conhecimentos e práticas baseadas nas interações de fatores ambientais, geográficos e humanos. A combinação de técnicas envolvidas neste processo confere originalidade, tipicidade e leva a uma notoriedade para seus produtos, originados nesta área geográfica e produzidos pelas pessoas que lá habitam. Os Territórios são entidades vivas e espaços inovadores que não podem ser reduzidos unicamente à sua tradição”.

O que nos leva a considerar a intervenção humana primordial para a definição do conceito.

“Quando falamos em uma cachaça de Salinas, para seguir no exemplo, já temos em nossa mente características comuns a diversos produtos da região, em termos de cor, aroma e sabor. Fazer uma cachaça no Rio Grande do Sul com esses parâmetros seria mais que imitar o que já é tradição em Minas”

Postos os argumentos de ambos os lados, o que se viu – ao contrário do esperado – não foi uma guerra, e sim uma discussão de alto nível, pautada por muito conhecimento, ética, e um respeito mútuo que ao meu ver é a alma da Cúpula da Cachaça.

Por um lado, tínhamos os argumentos de que, além de ser quase impossível reconhecer características regionais de uma cachaça em laboratório, era muito fácil reproduzir determinados padrões de uma cachaça em outro lugar do país, em diferente condição climática e com qualquer variedade de cana-de-açúcar. Isto é, seria possível produzir cachaças com as características sensoriais das salinenses no Rio Grande do Sul, por exemplo.

Por outro lado, apesar de todos concordarem com o fato acima, ficou claro que, apesar dessa possibilidade, esta cachaça salinense produzida nos Pampas seria uma imitação, uma réplica da cachaça de características notórias e consolidas como identidade regional dos produtos daquela localidade.

Quando falamos em uma cachaça de Salinas, para seguir no exemplo, já temos em nossa mente características comuns a diversos produtos da região, em termos de cor, aroma e sabor. Fazer uma cachaça no Rio Grande do Sul com esses parâmetros seria mais que imitar o que já é tradição em Minas; seria negar as peculiaridades que as cachaças do Rio Grande do Sul, por sua vez, possuem.

Fez-se a luz!

Apesar de já haver alguns consensos, ainda não podíamos visualizar alguma luz no fim do nosso túnel; sequer sabíamos para que lado era a saída. Foi quando o cúpulo Peter Armstrong, canadense há muito radicado no Brasil, especializado em comércio internacional da cachaça, e a quem não agrada a alegação do “terroir” para quaisquer bebidas destiladas, lembrou que existe na legislação brasileira duas definições que se aproximam das definições internacionais e clássicas do termo:

“As Indicações Geográficas se referem a produtos ou serviços que tenham uma origem geográfica específica. Seu registro reconhece reputação, qualidades e características que estão vinculadas ao local. Como resultado, elas comunicam ao mundo que uma certa região se especializou e tem capacidade de produzir um artigo diferenciado e de excelência ”, disse Peter.

A perplexidade foi completa. Como 12 especialistas apaixonados pela cachaça ainda não haviam mencionado isso? As Indicações Geográficas são normas estabelecidas pelo INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial) como forma de reconhecer algumas cidades ou regiões que ganharam notoriedade por seus produtos ou serviços. Quando certa qualidade e/ou tradição de determinado produto ou serviço podem ser atribuídos à sua origem, a Indicação Geográfica (IG) surge como fator decisivo para garantir sua proteção e diferenciação no mercado.

A IG é subdivida em duas modalidades: a Indicação de Procedência – IP e a Denominação de Origem – DG.

A Indicação de Procedência é “o nome geográfico de país, cidade, região ou localidade de seu território, que se tenha tornado conhecido como centro de extração, produção ou fabricação de determinado produto ou de prestação de determinado serviço”.

A Denominação de Origem refere-se ao nome do local, que designa “produto ou serviço cujas qualidades ou características se devam exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluídos fatores naturais e humanos”.

É importante lembrar que tanto no caso da Indicação de Procedência quanto no da Denominação de Origem, é necessária apresentação de documentos que comprovem que o nome geográfico seja, de fato, reconhecido como centro de extração, produção ou fabricação do produto ou prestação do serviço. E o INPI analisa os pedidos em longos processos.

Após debates de mais de seis horas, por algumas vezes até acalorados, que passaram por questões etnológicas, semânticas, químicas, legais e de marketing, a Cúpula conseguiu chegar a uma posição conjunta, que reflete a média do nosso pensamento. À pergunta: “É correto o uso do termo ‘terroir’ para a cachaça?”, a nossa resposta é: “A Cúpula da Cachaça considera que se pode afirmar a existência de ‘terroir’ para a cachaça, porém recomenda o uso dos termos ‘Indicação Geográfica’ na modalidade ‘Indicação de Procedência’, já previstos na legislação brasileira, que atendem às variações geográficas e culturais presentes no destilado nacional brasileiro”.

Essa declaração foi construída sob o consenso de que não é possível uma determinação por meios sensoriais ou químicos da procedência de uma cachaça, tampouco se podem desprezar os métodos específicos e tradicionais de produção de determinada região como um fator de identidade – não obstante, em tese, eles possam ser replicados em outra região.

Apesar de fecharmos questão nesta definição – aprovada por unanimidade! –, os debates continuaram – e continuam – informalmente durante toda a Cúpula e as semanas subsequentes. E vale ressaltar que cada membro da Cúpula é independente e continua a defender seus princípios e pontos de vistas, mas como grupo, coeso, unido e representativo, que defende a identidade da cachaça brasileira, soltamos a fumaça branca: Habemus terroir!

 

About Admin

Leave a Reply

Your email address will not be published.